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quinta-feira, 10 de novembro de 2016

ZEITGEIST

o sangue escorre pela sarjeta
sem nome
um número na série dos mais uns
não há espanto
só chuva dos olhos em silêncio abismal

emudece o i ching
quando a moeda vira alma
na turbulência dos haveres

a primavera se transmuta em pesadelo
na chuva de estilhaços
sem que se saiba dar os nomes às coisas

pelos gadgets chegam as notícias
do fim do mundo: os corpos retorcidos
pelas  bombas se atrevem nas fotografias: os futuros  se destroçam
sem  mais um segundo a perdurar

as ficções se desintegram
na invenção do tempo
na incerteza de que tudo pode ser bem o contrário

09/11/2016
João Lopes Filho








quarta-feira, 12 de outubro de 2016

CONJUNTO

aqui a primavera
já é

nos sonhos de kurosawa
flutuo entre pétalas
viro haste a vergar-se diante da chuva

balbucio
no branco de doer nos olhos
a mínima música

cultivo a flor
corpo feito do indizível
tecida de perfume e matéria diáfana
alheia ao trânsito das nuvens

a primavera é
sopro

13/09/2016
João Lopes Filho





DERIVA

achas minha prosa desértica
é que não tenho ensaiado andar nas nuvens
nem sentido o cheiro do café às seis da tarde

contudo, a carne vibra quando o vento leste
inaugura tardes novas
e faz a festa dos insetos coloridos

porque há uma hipótese de haver poesia.

16/06/2016
João Lopes Filho

TRATOR

abrigar seus devaneios
enquanto não brisam os ventos
nesta terra devastada
é o que posso amealhar nesta terra árida
onde os bárbaros invadem a casa
e interrompem a festa

nos ergamos
em nossos lugares comuns
ainda aceso o fogo em nossos ossos
até que esta américa
não precise de algemas

andemos em círculo, por ora,
antes que a poeira nos cegue
até que a poesia sirva de arma
contra o obscurantismo

09/06/2016

João Lopes Filho
RÉSTIA

encontro o menino
a perscrutar as partículas de poeira 
atravessadas pela luz

alheio ao relógio
apenas o sol
o tempo infinito


o menino alça vôos
se sustenta 
nas nuvens e no vento
subtraído todo o peso

a poeira suspensa
revelada
surpreende o menino 
em seus ensaios de viver

27/05/2015
João Lopes Filho
MECÂNICA

no tempo sem tempo
do menino
a luminância dos metais
se transfigura em amarelo

os  maquinismos não mais herméticos
os relógios em profusão
não escondem os mistérios do tempo

naquele espaço oracular
os véus se transformam em fogo
 e os metais se fundem
no caldeirão das palavras
e da magia

o menino vive seus dias
ávido dos achamentos
invenções
e devaneios
se inscrevendo na letra
do poema que nada lhe diz

16/06/2015
João Lopes Filho


OFÍCIO

o aço em brasa
fascina
o menino de olhos
e sentidos aguçados
na pletora de tudo que há:

revólveres, anéis, gramofones
máquinas, máquinas, máquinas
motores, ouro e diamantes
metais, cobre e poesia

e o derretimento dos metais

não há metáfora:
não há trégua:
tudo é aço em fúria
na pedreira a desvendar.

16/06/2015

João Lopes Filho
PEDRA

escorrego nas palavras
que não atiro
como pedras

e pesco em águas turvas
o que imagino do seu pensar
até que as palavras deslizam
sem traduzir
sem compor um texto
sem tessitura

sei sem saber
o que mais penso
desse pensar que se repete

é vento sem som
é pião desgovernado
é pedra nas palavras
é um espelho opaco
pedra
pedra nas palavras

10/12/2014

João Lopes Filho
INEXATO

que não me venha com seu amor
a desbotar-se tão rapidamente
quanto uma notícia de jornal

mas se tiver substância pode aportar

pode vir com klimt preso na garganta
e um grito longo no pescoço modigliani
traga suas tralhas,
seus livros,
seus pesos,
seus passos mal dados
junto com suas epifanias nas escadas rolantes

vamos ver a chuva cair sobre nossos delírios
a imaginar corpos que flutuam
sem que a morte os toque
sem pesar pelo que se perdeu

tontos com algum almodóvar
sejamos ondas a passar pela multidão atônita
que apenas esboça seus sorrisos de plástico
com seus dentes de aço
enquanto espera alguma vida na morte em que habita

miró que acampe em nossa galáxia
até que nos percamos ao calcular os dias

15/08/2016
João Lopes Filho








MARÉ

no dia em que tropecei na sua insônia
desconhecia as navegações sem barco
apesar de saber das confusões das marés

o zodíaco rodou sem resposta
assim como o tarô que não fez conexão
quando transgredi seus códigos

song to the siren insinuou-se com as sutilezas
dos olhos que aguardam o sol
nas ruas onde o medo anda a galope
por espaços onde os hermetismos aventam descansar

tão futuro
quanto as marés
que nunca sabem seu destino
assim será
pois os ventos desobedecem toda vã geometria

brinquemos com o vento leste
enquanto eles se distraem com os letreiros que os iludem


07/06/2016

João Lopes Filho
NEXOS

não contava o vil metal
nem se vangloriava da prata e do ouro
não, meu pai contabilizava suas artes

os idílios o traíam
quando o centro dos mecanismos estava a contabilizar o tempo
enquanto algo se diluía na coreografia da fumaça dos cigarros

refugava as hóstias plásticas
se refugiava na dialética sem saber-se contradição
uns dias era relógio e em outros, anos-luz

e dava nomes para a construção do meu dicionário
antimônio, por exemplo

não era época de muitas flores
nem de pousar em nuvens de algodão
mas nunca vi os anos sentarem-se à sua mesa

17/06/2016

João Lopes Filho
LÍQUIDO

movo meus pés
nessa atmosfera mutante
onde os fluxos não desenham caligrafias

o sahara parece habitar
 a rede espessa que do espelho
só reflete o vazio

não há girassóis
nem duendes na praça vazia
onde mil e uma noites de histórias
se esculpem sob os pés

há o mar que circula nas veias
a teimar
em contornar os muros

05/08/2016
João Lopes Filho


GLACIAL

o frio não combina com o mar
nem com a imensidão desta ausência
nem com os pés arrastando no chão
à deriva

o mar é bravo
e está frio a doer nos ossos
a lascar a pele já despida de sua cor

o instante de ver o mar
não ultrapassou para a ventura depois da linha
aqui é só o agora pálido, sem tintas
num torpor que transmuta-se em nevoeiro

os dias se arrastam multiplicados na sua dor
são segundos infinitos que duram como blocos de gelo
que não se sabem eternos

aqui não há o que celebrar
pois a alma está submersa
nesta terra fria e vulgar

os ventos extirparam as palavras
e deram-me um coração de pedra

e fizeram de mim um iceberg
ao sabor dos desejos das ondas
que não conhecem perigo

nesta imensidão desértica
flutuar
talvez como destino
e atravessar este frio até algum lugar aqui mesmo


04/04/2016
João Lopes Filho






FLÂNEUR

andei como estrangeiro
por ruas e becos da cidade
dei-me de tocaia com o espelho
quando os descaminhos
incidiram pela porta entreaberta

pouca luz no embalo da torrente de signos
além das angulações
que tentam capturar a magia das horas
no raro encontro onde os sentidos imperam

no tempo, aquele hiato,
nos fisgou
quando os relógios saem de si
e as palavras se desvelam em torrentes

eis-nos, portanto, de volta
de onde não sabíamos haver partido

31/05/2016
João Lopes Filho





DEZANOVE

sacudido pelo vento leste
confesso impaciência
com esses sonhos do século dezenove

me arrepio com a poesia de orides fontela
tão crua
que não aterrisso nunca mais

e tento tocar o litoral desta hora em ebulição
neste século onde a barbárie constrói pontes

14/06/2016
João Lopes Filho


CHARADA

será a última respiração
final da série
desmentindo  o número transfinito

george cantor não salvará
do nada

a última respiração
não se decifra
não se sabe última

é o mergulho abissal
sem rede

13/03/2016

João Lopes Filho
ANÚNCIO

entrego todo o ouro das catedrais
as lápides encardidas
temperadas de sol
os anúncios das liquidações de outono

para que se dissipe a tempestade
que me enche de perguntas

para que a canção brote
deste lugar onde não alcanço
os olhos que canibalizam o mundo

07/06/2016
João Lopes Filho


terça-feira, 11 de outubro de 2016

ANTENA

me acostumei às miragens
aos meteoros que chegam em noites inusitadas
à música ao longe mínima que seja
e ao carro deslizando pelas estradas:

é sempre um passeio em campos de flores

nãos
nãos se tornam nós
nos passeios em campos de flores
quando o interdito se acrescenta
e os nós se diluem
como cascatas que sendo as mesmas
não são mais iguais a si

não me acostumei aos idílios cosméticos
aos segredos de plástico
às noites de neon sem alma
aos sinos que apenas marcam as horas perdidas

volto sempre aos passeios em campos de flores
como átomos libertos
sutis como a vida breve dos insetos
que salvam a nudez do dia


18/04/2016
João Lopes Filho










CONCÊNTRICOS

hoje não bebi o vinho tinto
nem alimentei os passarinhos
nem vi o sol passar sobre meu corpo

hoje  circulei como estrangeiro
ainda com os vestígios dos sábados
entre livros que me olham desde as lonjuras do tempo

hoje o beijo improvável
como troféu diáfano
aquele quase furto e solidão
ressoa como círculos na água

hoje uns segundos longos
se tornam vastidão
sem promessa
infinitos em si
e aguardam nova convergência dos astros

17/05/2016
João Lopes Filho



PREGAÇÃO

tem mais
as tantas esdrúxulas vozes
que se perfilam
em cada esquina
a carpir suas lamúrias

a encenar o ódio
a dizer o que se deve sentir
até dizer as cores que agora devem compor o céu

a tecla de retroceder
foi acionada
pelo livro que eles mesmos escreveram

o retrovisor
guia para ir em frente
sem mais

09/10/2016

João Lopes Filho
BOLHA

a cidade despossuída de si
nos poda as escolhas

o litoral é ali
alguns metros diante de nós
como sarjetas gélidas

sem pranto
nos abriguemos num bar qualquer que nos caiba
para destilar rios
de planos, tombos, luzes, chão e curvas

no inverno tão plagiado
façamos da bolha nosso refúgio
na abstração que deve ser tudo ao redor

17/06/2016
João Lopes Filho





DELIRANTE

pássaro
no dia atemporal
com a pia plena de pratos de ontem

diz-me que é domingo
quando, por uma química ainda em combustão,
um perfume vândalo se aninha por estas vagas
sem que possa se lançar em desculpas

defronte,
o calendário não disfarça:
o dia tem nome e número

até que os delírios se esvoacem
se reiterem
com o vento leste que incide como dardos suaves
indo adiante
como o indizível de todas as horas

09/10/2016
João Lopes Filho